30.10.12

A Loucura de Almayer
Título original: La Folie Almayer
De: Chantal Akerman
Com: Stanislas Merhar, Marc Barbé, Aurora Marion
Outros dados: BEL/FRA, 2009, Cores, 127 min.


"Há um homem de tez escura (malaio? cambojano?) que faz playback de uma canção de Dean Martin e que, logo na primeira cena do filme, é esfaqueado em palco, num bar manhoso. Atrás, um conjunto de mulheres que dançam, uma delas, a quem chamam Nina, quase sonâmbula. Ante a violência fogem todas, ela não. Então alguém grita que Daïn morreu. E Nina, sem deveras ‘acordar’, começa a cantar, insolitamente, Mozart e em latim — o ‘Ave Verum Corpus’. Depois, uma legenda leva-nos para um tempo anterior e para um outro local — indefinidos ambos — e vamos saber a história que aquele desfecho culminou."


"Há muita água, muito verde, lama, meia-luz, um som antigo, bambus, pântano, um búfalo que passa, uma respiração que ofega — como se tudo fosse o resultado de uma sezão tropical, uma visão distorcida por uma doença que se pega a nós sem remédio nem alívio. Há uma história, um fio de história, a história de Almayer que foi de França para o outro lado do mundo, em busca de riqueza — pois que outra coisa foram os europeus demandar em terra estranha? Mas o ouro não veio, o caminho da mina ficou por achar e, enquanto a espera não desespera, arranjou mulher local que não ama — com quem fez uma filha de sangue misturado, Nina, a quem há de querer dar educação de branca. Ela vai, por isso, para um colégio interno, religioso, longe da selva e da lama, longe dos seus — de onde virá a ser expulsa no momento em que a mensalidade deixar de ser paga."


"Ele não sabe, mas ela endureceu o seu coração nesse lugar onde nunca deixaram que Nina se esquecesse que não era como as outras. Ele não sabe, mas ela quase jurou a si mesma que não se quererá nunca parecer com uma mulher branca e, de volta ao pai, é a mãe que a empurra dali para fora para que jamais se torne escrava de homem branco algum. E empurra-a para os braços de Daïn, um rebelde, um foragido, porventura um traficante que a ama, a quem Nina se entrega — mas a quem não ama, nem sabe se alguma vez conseguirá amar. Tudo é, todavia, melhor do que aquele pai que lhe afirma amor, mas cujos gestos a desentendem — ele que a devia ter ido buscar quando ela sofria, lá longe, e nem sabia como ela se sentia. Almayer virá a morrer sozinho, ensopado em gin e balbuciando cautelas com a sua menina — não andes descalça, cuidado com as cobras? Nem isso saberemos, o filme abandona-o ao seu torpor de homem branco pungido pelos trópicos, uma espécie de gente que foi até lá em busca da fortuna e por lá ficou, cafrealizada, nada tendo encontrado daquilo que procurava e corroída por uma espécie de letargia malsã. Nina, mestiça, há de, contudo, lembrar-se de Mozart para expressar a sua dor."

"“A Loucura de Almayer” é um filme que provoca um fascínio confuso, uma forma de embriaguez, algo que nos envolve e nos leva por caminhos que não são racionais — inútil analisar ou dissecar a história, processo conducente ao aborrecimento do espectador a curto prazo. Antes, esta obra que Chantal Akerman foi buscar a Conrad e transfigurar apela por inteiro ao sensorial, obriga-nos a mergulhar num mundo luxuriante, esquivo, escuro, nebuloso — fazendo-nos indagar, vagando. É preciso que nos deixemos perder (e reencontrar) neste filme em que as energias de uma singularíssima cineasta — por este mês com retrospetiva integral na Cinemateca Portuguesa que há que não deixar em claro — fazem florescer intensamente um olhar particular sobre a vivência e a mítica memória colonial da velha Europa. Jorge Leitão Ramos, Expresso de 27/10/2012